Revista de Estudos Universitários, Cultura, v.34 n.2 dezebro 2008, Sorocaba, SP, p. 161
SALVATIERRA
MAIRAL, Pedro. Salvatierra. Buenos Aires: Emecé Editores, 2008.
Leandro Belinaso Guimarães
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lebelinaso@uol.com.br
Difícil começar a escrever uma resenha desse delicioso livro do escritor argentino Pedro Mairal, após tê-lo devorado em poucos dias, sem lembrar um texto de Michel Foucault (2001) intitulado “O que é um autor?”. Neste ensaio podemos ler a seguinte passagem:
MAIRAL, Pedro. Salvatierra. Buenos Aires: Emecé Editores, 2008.
Leandro Belinaso Guimarães
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: lebelinaso@uol.com.br
Difícil começar a escrever uma resenha desse delicioso livro do escritor argentino Pedro Mairal, após tê-lo devorado em poucos dias, sem lembrar um texto de Michel Foucault (2001) intitulado “O que é um autor?”. Neste ensaio podemos ler a seguinte passagem:
“na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; não se trata da amarração de um sujeito em uma linguagem; trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não pára de desaparecer” (p. 268).
O livro de Mairal nos remete às indagações sobre a autoria e a pretensa individualidade do autor, sobre a obra e a sua teimosia em se querer completa. Obra e autor desaparecem paulatinamente no livro em questão, como se navegassem, se desprendendo de si mesmos, calmamente em um rio caudaloso que margeia um povoado do interior. Mairal parece nos dizer: é preciso um tempo para poder expressar algo, fazendo dos estilhaços de uma pressuposta obra construída, singelos desfrutes de momentos de vida. Do que foi produzido, quase nada mais se assemelharia com as intencionalidades de um autor. Assim, uma obra (ou seriam seus fragmentos?) não pertence a um autor, mas àqueles que a deseja dispor no mundo de outros modos. Escrever uma resenha, quem sabe, passe por esse desborde, pois se trataria de falar sobre uma obra, sobre um autor ou sobre algo da experiência da leitura, daquilo que me passou ao ler Salvatierra?
Em seu Blog [http://pedromairal.blogspot.com], Mairal comenta sobre como surgiu um desejo que o permitiu tecer Salvatierra: foi assistindo a um documentário na televisão sobre o pintor estadunidense Jackson Pollock [1912-1956]. Nele, o autor se deparou com o fato de Pollock ter deixado de pintar, ter exaurido sua veia criativa em decorrência de um excesso de exibição. Algo, quem sabe, comum em um mundo acelerado e repleto de imagens midiáticas que atualizam um “sempre” mesmo a todo o momento. Difícil estar anônimo em um tempo repleto de urbanidades, com tantas visibilidades e de privacidades tão públicas (e tão amalgamadas). Nesse mundo, é possível conquistar um tempo para uma produção repleta de gozo e de vida?
Salvatierra, o pintor cujo sobrenome dá título ao livro, parece ter se permitido esse tempo. Porém, torna-se imperativo indagar sobre os atributos que lhe foram importantes para que conseguisse pintar ininterruptamente momentos de sua vida. Aos nove anos de idade Salvatierra sofreu um acidente que lhe deixou mudo. Aos vinte anos a pintura passou a ser uma forma vital de comunicação sua com seu mundo subjetivo. Autodidata, Salvatierra, funcionário dos correios em um povoado do interior argentino chamado Barrancales, não se constituiu artista, não seguiu correntes artísticas, nem nunca expôs suas pinturas (nem mesmo na sua pacata província). Foi, plenamente, um anônimo. Todos os dias, Salvatierra terminava sua jornada de trabalho pintando em um galpão. Nada o impediu, em quase sessenta anos, de pintar diariamente, acumulando rolos e rolos contínuos e ininterruptos de pintura (que somados poderiam compor uma única tela), como se nunca tivesse conhecido a falta de criatividade. Um Pollock às avessas, que de tanta falta de exibição, de comunicação, de midiatização, pôde, como disse Pedro Mairal (2008) em entrevista para o jornal argentino Página 12, pintar “un tiempo, esa espécie de lento movimiento, como de rio”.
Salvatierra, romance inédito no Brasil (aliás, nem mesmo o livro mais conhecido de Mairal: “Una noche con Sabrina Love” ganhou uma edição brasileira), é também o sobrenome de Miguel Salvatierra, narrador do livro e filho do falecido pintor. O narrador e seu irmão (mas, sobretudo, o primeiro) empreendem uma busca por trazer ao mundo a obra do pai. A intenção é digitalizar toda a obra, além de colocá-la à mostra em um museu na Holanda. Nesse mergulho na pintura do pai, no cenário da infância, no velho galpão de lembranças, o narrador reencontra-se consigo mesmo.
O suspense do livro está marcado por uma falta, uma ausência que faz do leitor um curioso e um ansioso por seu desfecho. Um dia da obra de Salvatierra está desaparecido. Apenas um rolo de sua pintura diária está ausente. E o narrador sai em busca desse pedaço faltante da obra. É nesse percurso, nessa tentativa de encontrar aquilo que não está presente, que o narrador encontra imagens, histórias, narrativas, cores, sabores e sons; enfim, vê os modos de composição de um sujeito (ele mesmo?) nas margens daquele lento rio. Um conjunto de indagações se produz: por que um dia da obra está ausente? O que estaria pintado naquele rolo? Que histórias permeiam esse desaparecimento?
O leitor dessa resenha poderá ficar chateado, mas não elucidarei tais perguntas. Há que ler Salvatierra. Há que navegar lentamente por um tempo, um rio e, quem sabe, encontrar-se em alguma passagem. O mais interessante, quem sabe, é perceber que esse movimento, essa busca, esse encontro está possibilitado por uma ausência, por uma falta, por um fragmento, por um estilhaço de uma obra incompleta. Inicia-se buscando por um autor e uma obra e se acaba indagando por um leitor à procura de si mesmo, a procura de vida. Mais do que marcar um fim, talvez possa terminar essa resenha fazendo uso de um fragmento de um poema chamado “Mensajes”, incluído na obra “Consumidor Final”, também de Pedro Mairal (2003). Nesse pequeno trecho poético talvez possamos encontrar alguma explicação (seria ela necessária?) para que o provinciano, mudo, autodidata, desconhecido artista que dá nome ao livro seja chamado de Salvatierra.
(...) Te dejo mis palabras como un fósforo
Que humildemente arde en la penumbra
Esta estrella redonda en que vivimos
Aún no há terminado de apagarse
*
Referências
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: _____. Ditos & Escritos. Estética: literatura, pintura, música e cinema (vol. III), Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001.
MAIRAL, Pedro. “La literatura es lo que no te animaste a decir”. In: FRIEIRA, Silvina (entrevistadora). Página 12 (Suplemento Cultura & Espetáculos), 12 de março de 2008. Disponível em: [http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/4-9486-2008-03-12.html]. Acesso em: 10 de julho de 2008.
MAIRAL, Pedro. Consumidor Final. Buenos Aires: Bajo la luna nueva Editorial, 2003.