Portugués

Una noche con Sabrina Love, Texto Editora, Portugal, 2002
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SÓ ACONTECE UMA VEZ

Título original: Una noche con Sabrina Love
Autor: Pedro Mairal
Traduçao: R. Assis Santos
© 2002, Texto Editora, LDA., para a edição portuguesa


Capítulo 1

Como nunca mais começava o espectáculo de Sabrina Love, Daniel percorria os sessenta canais roubados à TVCabo, deixando as imagens durar apenas alguns segundos. Um locutor, o fundo do mar, umas girafas, uma perseguição de automóveis, mulheres venezuelanas a falar, lava vulcânica, as auto-estradas na madrugada espanhola, um homem com cara de terror, umas mão a enfeitar um bolo. Passamos entã. Tu nunca poderás. Most incredible and amaz. Tástrofe dos úl. Allora il vecchio. Um corte super. A planura do. Pára, Laurinha. Uma única história, a toda a velocidade, na qual o sol do mapa de satélite do boletim meteorológico brilhava sobre o documentário do Quénia onde os leões copulavam mostrando os dentes, na mesma posição que o par norte-americano do canal pornográfico, que também mostrava os dentes e fechava os olhos, como se quisesse esquecer a imagem daqueles iraquianos no noticiário apontando as metralhadoras ao arqueiro argentino, que caía de joelhos e levantava os braços porque sabia que iam fuzilá-lo, e que via toda a sua vida passar-lhe diante dos olhos num clarão, a começar pelos desenhos animados da infância. Uma história infinita que Daniel acelerava como que a tentar apurar o tempo que faltava para o programa de Sabrina Love. Apenas se detinha no beijo de algum par que começava a despir-se na penumbra azulada de um filme série B, desejando que o fumo que saía pela chaminé fundida com a fachada de um edifício se demorasse, em pleno dia seguinte, e que a actriz fizesse um grande esforço para manter o lençol à altura das clavículas.

A luz do televisor diminuía, fazendo aumentar o tamanho do quarto, e provocando caretas estranhas na mulheres nuas dos pósteres desdobráveis que estavam colados nas paredes, enrugados da humidade e das chuvas que tinham feito transbordar os rios do litoral até cobrirem a estrada municipal que ligava a cidade de Curuguazú a Buenos Aires. O calor da noite era como a respiração de um animal imenso. Sentado na borda da cama, Daniel matava os mosquitos com uma agulha de tecer. Quando se fixava num programa, fazia-a zumbir no ar com uma cadência hipnótica, sem desviar o olhar do ecrã. Na outra mão segurava um papel com um número anotado: 2756. De vez em quando detinha-se no canal para adultos. Agora eram duas mulheres lambendo-se interminavelmente na borda de uma piscina. Já tinha visto. Faltavam mais dois coitos com as respectivas cenas de diálogo pelo meio, o genérico e depois, finalmente, o programa de Sabrina Love.

Saiu do quarto e fechou a porta com uma chave que guardava no bolso. Atravessou o pátio às escuras, com o seu andar adolescente, meio desengonçado, como se o esqueleto lhe estivesse dois tamanhos acima. Ouviam-se os cães do quarteirão a ladrar na sombra cálida. Foi até à cozinha e abriu o frigorífico. Ficou ali a sentir o frio, olhando as garrafas e os restos. Tirou só um jarro de água e fechou. Ouviu os passos curtos de sua avó e a batida a dois tempos do andarilho.

– Danielito, és tu?
– Sim, Avó.
– Que fazes levantado?
– Tinha sede.

Na penumbra viu-a aproximar-se devagar, o corpo vencido, os braços fracos, mas com força suficiente para continuar a levantar o andarilho.

– Queres que te prepare qualquer coisita?
– Não, avó, tenho que dormir – disse, e bebeu a água com grandes goles.
– Vais trabalhar amanhã?
– Sim, daqui a duas horas, às cinco.
– Mas, Daniel, é mesmo noctívago, nunca tens sono. A tu mãe dizia que nasceste...
– ...com os olhos abertos.
– Sim, com os olhos abertos. Trata de dormir um pouco – disse-lhe, e ajeitou-lhe a franja para o lado passando-lhe a mão pelo rosto.
Suportou a carícia, disse «até amanhã» e saiu para o pátio, aborrecido.
– Danielito, a tua irmã vem cá hoje à tarde fazer a limpeza, não deixes a tua porta fechada à chave.

Daniel meteu-se no quarto e trancou o ferrolho pelo lado de dentro.

Sentou-se na borda da cama. O Show de Sabrina Love já estava a começar. A apresentação, com música borbulhante, era uma sequência de imagens dela em diferentes posições e com acessórios especiais para realizar as mais diversas fantasias eróticas. Era uma mulher loura, alta, com uma cabeleira de dinamarquesa electrocutada, lábios vermelhos prontos a saltarem-lhe da cara, seios generosos e ancas amplas que, quando se estendida sobre a cama, a faziam parecer uma égua voluptuosa deitada ao sol. Hoje apresentava o seu programa no jacuzzi. Convidava o actor e sex symbol do momento a meter-se lá dentro com ela, para uma entrevista em que conseguia causar-lhe embaraço com todo o tipo de sugestões, apresentava imagens provocantes captadas em lojas de pornografia, opiniões de sexólogos, fragmentos das suas participações em diferentes filmes para adultos, respondia ao correio dos telespectadores com conselhos úteis para a cama, tudo com uma alegria e uma inocência inigualáveis. «E agora, meus queridos mamíferos divinos», dizia juntando os seios com os antebraços, «vamos àquilo de que todos estão à espera: o sorteio para ver com quem passo a noite aqui, no Hotel Keops, os dois sozinhos em carne viva!» Agora gatinhava, de cinto de ligas e corpete preto, sobre uma montanha de papéis que transbordavam de um aquário em acrílico. «Tantos homens!», dizia enquanto baralhava «pelo que me disseram na produção também há mulheres, portanto isto pode ser uma surpresa.» Daniel olhava para o seu número.

Tinha telefonado um mês antes, quando conseguira finalmente ver o programa, depois de alguma manobras clandestinas, que se tinham desencadeado na tarde em que subiu à açoteia para arranjar a antena que não captava bem o sinal do repetidor local e, sobre a parede entre os dois prédios, topou com um cabo novo, azul, que entrava pela casa dos vizinhos; era a transmissão por cabo trazida recentemente de Buenos Aires. Algo que muito poucos tinham em Curuguazú. Nessa madrugada fez uma ligação com um cabo coaxial e puxou-o até ao seu quarto. Precisava de um televisor. Tirá-lo à avó seria privá-la do seu único entretenimento. Foi ter com o gordo Carboni que se sabia que armazenava mercadoria suspeita. Perto das casas de campo, num barracão cheio de restos de automóveis e electrodomésticos usados, venderam-lhe por metade do seu salário um televisor com o tubo solto e um descodificador de canais.

– Apertas um pouco aqui, ligas-lhe dois ou três fiozinhos lá dentro e não hás-de ter problemas. O conversor é quase novo. Fico-te a dever o controlo remoto.
– Com isto vêem-se todos os canais? – perguntou Daniel, já abraçado ao aparelho.
– Sim, o pornográfico também – disse-lhe o gordo Carboni. Despachou-o, fechou o portão de chapa e, na estrada de terra à torreira do sol, Daniel ouviu-o gritar-lhe, trocista:
– Vais ficar cego, miúdo!

Mas ele sabia que isso não era verdade. Durante a tarde arranjou o televisor, desmontou o descodificador para ver como funcionava, e voltou a montá-lo. Nessa noite, tendo já tudo ligado, passado o espanto das primeiras imagens do canal para adultos, compreendeu que já não seriam as revistas, compradas com vergonha no quiosque do terminal, com fotografias de mulheres às quais a imaginação tinha dar movimento, mas antes uma corrente erótica contínua que a partir de agora levaria até ao seu quarto aqueles corpos ofegantes em todas as posições. E entregou-se com felicidade a um onanismo estival que, longe de o deixar cego, o fez ver pela primeira vez os segredos mais secretos e recônditos da sua existência.

Quando viu o programa de Sabrina Love e soube do concurso, ligou para o número 0600 indicado no ecrã, e depois de dar os seus dados uma voz gravada ditou-lhe aquele número que agora segurava com a mão tremendo ligeiramente. Via como Sabrina Love revolvia o montão de papéis dizendo: «Que pena não poder satisfazer-vos a todos, meus amores. Agora vou pedir aos rapazes da produção que atirem os papelinhos ao ar, e o que me cair no decote será o vencedor.» Dois tipos musculosos ajudaram-na a levantar-se e começaram a atirar ao ar grandes mãos-cheias de papéis caindo como uma tempestade sobre ela, que movia os ombros levantando levemente o peito até que, finalmente, um papelinho pousou no soutien preto. Ela esperou que os restantes acabassem de cair. Olhou para baixo, para onde estava o papel, virou-se para a câmara, segurou o papel entre os dedos e disse: «Vamos lá ver quem é este desavergonhado. Bom. Num quarto do Hotel Keops, com tudo pago, sozinhos, vamos passar uma noite inesquecível eu, Sabrina Love, a primeira porno star argentina, e...» Daniel olhou para o seu número: 2756. «Ai, fantástico! Não vou dizer o nome para evitar problemas com alguma esposa ciumenta, mas é um homem, e tem o dois mil setecentos e cinquenta e seis.» Daniel pôs-se de pé, pensou que tinha ouvido mal. Sabrina Love festejou dançando ao som de uma música de saxofone aveludado e depois disse: «O vencedor deve lembrar-se de que tem 24 horas para entrar em contacto com a produção. Nós não lhe vamos telefonar porque talvez o vencedor prefira que o segredo fique só entre mim e ele. Portanto, dois mil setecentos e cinquenta e seis, meu amor, borracho, fico à tua espera para fazermos tudo o que tu imaginas, e entretanto vou ter-te guardadinho aqui.» Pôs o papel novamente no decote e encerrou o programa com o seu número de strip-tease.

Daniel ficou imóvel, com as mãos na cabeça. Depois olhou para o quarto à sua volta e sorriu nervoso. Passava o genérico do Show de Sabrina Love. Apagou o televisor. Meteu-se na cama vestido e tapou-se completamente. Não conseguia acreditar. Permaneceu em silêncio, assustado. A noite de verão já se desfazia no cantar ainda obscuro de um galo.